O crime de estelionato, tipificado no Artigo 171 do Código Penal, é, em sua essência, a obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, mediante engano. No entanto, o avanço tecnológico impôs ao legislador a necessidade de diferenciar as abordagens desse crime. Assim, ao lado do estelionato “comum” ou “simples”, surgiu a figura do estelionato mediante fraude eletrônica, com suas particularidades e consequências legais mais severas.
Para quem busca compreender uma acusação ou se proteger de golpes, conhecer as nuances entre essas modalidades é crucial.
O Estelionato Comum (Art. 171, caput, do Código Penal)
A versão “clássica” do estelionato, prevista no caput do Artigo 171, define a conduta como:
“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.”
Características principais:
- Meio Fraudulento Amplo: O ardil, artifício ou meio fraudulento pode ser qualquer coisa que leve a vítima a erro. Isso inclui desde a falsificação de documentos, a encenação de uma situação, o uso de falsas identidades em contato direto, até a simples mentira convincente.
- Interação Direta (não exclusiva): Embora possa envolver meios indiretos (como correspondência), o estelionato comum muitas vezes pressupõe uma interação mais “pessoal” ou física entre o agente e a vítima, onde o engano é construído por meios mais tradicionais.
- Exemplos: O famoso “golpe do bilhete premiado” (onde a vítima entrega dinheiro em troca de um bilhete falso), a venda de um imóvel que não existe, o golpe da falsa herança (por carta ou telefonema, sem uso de sistemas eletrônicos sofisticados para a fraude em si).
Nessa modalidade, a vítima entrega o bem ou valor voluntariamente, mas é enganada pela fraude aplicada pelo criminoso.
O Estelionato Mediante Fraude Eletrônica (Art. 171, § 2º-A, do Código Penal)
Introduzido pela Lei nº 14.155/2021, essa modalidade reflete a realidade dos crimes digitais. O § 2º-A do Art. 171 estabelece que:
“A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado mediante fraude eletrônica ou por meio de sistemas de informática e telemática, com ou sem a violação de mecanismo de segurança dos dispositivos da vítima ou para a utilização de programas maliciosos como vírus, trojans, ou qualquer outro que faça a coleta de dados de forma oculta ou ilícita.”
Características principais e Diferenciais:
- Meio Executório Específico: A principal diferença reside no meio utilizado para a prática do crime. A fraude é executada exclusivamente por via eletrônica, utilizando ferramentas como internet, redes sociais, aplicativos de mensagens, e-mails, plataformas de e-commerce, sistemas bancários online, ou qualquer outro sistema de informática ou telemática.
- Ataque a Sistemas: Muitas vezes, a fraude eletrônica envolve a manipulação de sistemas de segurança, o uso de programas maliciosos (malware, vírus, trojans) para coletar dados da vítima, ou o acesso não autorizado a contas.
- Interação Remota e em Massa: Permite que o criminoso aja de forma remota, atingindo um grande número de vítimas simultaneamente (como em campanhas de phishing ou envio de SMS falsos).
- Exemplos:
- Phishing: E-mails ou mensagens que simulam ser de bancos ou empresas para roubar dados.
- Golpe do PIX: Falsos comprovantes, links fraudulentos para pagamentos, QR Codes adulterados.
- Clonagem de WhatsApp: Onde o criminoso se apropria da conta da vítima para pedir dinheiro a contatos.
- Falsos Investimentos Online: Plataformas que prometem lucros altos, mas são apenas fachadas para captação de dinheiro.
- Fraudes em E-commerce: Venda de produtos inexistentes em sites falsos.
- Pena Mais Elevada: A pena para o estelionato eletrônico é consideravelmente maior (reclusão de 4 a 8 anos e multa), podendo ser aumentada ainda mais se o crime for cometido contra idoso ou vulnerável, ou se for praticado por meio de servidor mantido fora do país.
Tabela Comparativa: Estelionato Comum x Estelionato Eletrônico
Característica | Estelionato Comum (Art. 171, caput) | Estelionato Mediante Fraude Eletrônica (Art. 171, § 2º-A) |
---|---|---|
Meio da Fraude | Qualquer artifício, ardil ou meio fraudulento (documentos falsos, encenação, mentira). | Exclusivamente por meios eletrônicos (internet, sistemas de informática, telemática, apps). |
Ambiente de Ação | Predominantemente físico ou interação direta/tradicional. | Predominantemente digital/virtual, à distância. |
Complexidade Técnica | Não exige conhecimentos tecnológicos avançados. | Pode envolver manipulação de sistemas, softwares maliciosos, engenharia social digital. |
Pena Base | Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. | Reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Pode ser aumentada). |
Natureza da Ação Penal | Geralmente condicionada à representação da vítima (salvo exceções). | Incondicionada (sempre processado independentemente da vontade da vítima) quando o crime é cometido por meio de sistemas de informática, telemática ou redes sociais, de conexão à internet ou de telefonia que o agente usa para cometer a fraude, ou quando a fraude é praticada contra a Administração Pública ou contra pessoa idosa ou vulnerável. Em outras situações, também pode ser condicionada à representação, mas a regra geral é incondicionada para as fraudes eletrônicas que envolvem sistemas complexos ou de conexão à internet. |
A Importância da Correta Classificação e do Advogado Criminalista
Para a defesa, a distinção é fundamental. Uma acusação de estelionato comum pode ter uma pena muito diferente da eletrônica, e os requisitos para sua configuração são distintos. Argumentar que uma fraude, embora digital, não se enquadra nas exigências do § 2º-A, pode levar à desclassificação para o estelionato comum e, consequentemente, a uma pena menor e à possibilidade de outros benefícios.
Para as vítimas, entender essa diferença é crucial para saber como proceder. O estelionato eletrônico, pela sua complexidade e pelos desafios de rastreamento, exige uma ação policial e pericial diferenciada.
Em ambos os casos, a atuação de um advogado criminalista especializado é indispensável. Ele será capaz de:
- Analisar o modus operandi: Distinguir claramente qual modalidade de estelionato foi praticada, ou se houve algum crime.
- Propor a tese correta: Seja para desclassificar a conduta para uma modalidade menos grave (na defesa do acusado) ou para garantir que a acusação seja feita de forma correta e robusta (na representação da vítima).
- Navegar nas provas digitais: Lidar com evidências eletrônicas, rastreamento de IP, análise de dispositivos e outras provas que são comuns no ambiente digital.
- Garantir o respeito aos prazos e condições: Para a vítima, assegurar que a representação seja feita corretamente, se for o caso; para o acusado, verificar se os requisitos da ação penal foram cumpridos.
Não subestime a complexidade do estelionato. A correta tipificação do crime é o primeiro passo para uma defesa eficaz ou para a busca por justiça. Busque sempre o apoio de um advogado criminalista com expertise na área.